MARX NA CAATINGA.Cordel de Evaldo Araújo.


KARL MARX MATUTO
Evaldo Araujo

Karl Marx, cabra andarilho,
Que usava chapéu de couro
Quando se encontrou com Louro
Pra fazer um trocadilho
Pensou em um estribilho
Em fazer algo legal
Teve idéia genial
Falou de Lucro e Salário
Defendeu o proletário
Escreveu O Capital

Se embrenhou na caatinga
Pra falar de Mais Valia
Entrou numa cantoria
E bebeu logo uma pinga
Um bebo com a catinga
De mortos queimados vivos
Bateu palmas, deu dois silvos
Deu um grito, lá do fundo
Esse diz pra todo mundo:
- Trabalhadores, uni-vos!.

Quando o forró começou
Quis fazer uma assembléia
Porém chegou uma véia
Que com ele se agarrou
Ele fogo não negou
Mostrou a foice e o martelo
A véia mostrou o pinguelo
E montou uma barricada
Chamou-o pr’uma trepada
Pra deixar de ser donzelo

Quis falar do Manifesto
E a véía manifestou-se
Disse: - Agora lascou-se
O homi só quer protesto
Parece até que eu não presto
Que não gostou do que eu fiz
Não quis sequer fazer bis
Ou por mais não ter vontade,
Ou por estar com saudade
Das Comuna de Paris

Depois de dançar com a véia
Se agarrou com os oito-baixo
Virou sanfoneiro macho
E começou fazer gréia
Tomou cana com geléia
Fez sextilha, fez quadrão
Depois deu um empurrão
Num soldado de polícia
E dedada com malícia
No rabo de um ladrão

Propôs a expropriação
Do estoque da bodega
Se juntou com uma cega
Pra comandar a ação
Findou a exploração
Em Tabira e São José
Baixou o preço do mé
Acabando com o lucro
Montou um cavalo xucro
E partiu pro cabaré

Pra não ficar isolado
Mandou chamar Friedrich
Engels, que chegou num pique
Todo metido a letrado
Vendo o lugar parado
Pediram uma aguardente
A uma moça contente
Cujo corpo se rebola
Pegaram logo a viola
E começaram o repente

Começaram pel’Origem
Da Família e do Estado
E do Bem que é Privado
Provocando a moça virgem,
Que findou tendo vertigem
Ouvindo o palavreado
Tão difícil e complicado
Que acabou vomitando
E o povo inteiro gritando:
“Deixa a moça, véi safado!”

Mas os dois continuaram
Cada qual cantando um tópico
Do Socialismo Utópico
E a todos espantaram
Depois foi que eles chegaram
Ao Comunismo Cientifico
Falaram do frigorífico
Que explora todo mundo
E deram pra Seu Raimundo
Mais um título honorífico

Pra ganhar dos comunistas
Pinto e Louro ali chegaram
E, ligeiro, ensinaram
Quem eram os repentistas
Calaram os socialistas
Até o raiar do dia
Com Coqueiro-da-Bahia,
Dez pés de queijo caído
Com repique e remoído
Esquentando a cantoria

Quando ouviram o Quadrão
Os barbudos foram embora
Em menos de meia-hora,
Abandonaram o Sertão
Saíram num carreirão
Por serra, morro e montanha
Numa montaria estranha
Que os dois tinham roubado
E no tal jumento alado
Voaram pra Alemanha

Não se sabe se é verdade
Se é lorota ou mentira
Mas eu sei que em Tabira
Se diz com sinceridade
Que um dia a cidade
Recebeu um alemão
Que fez a revolução
No meio da cantoria
E que durante esse dia
Foi comunista o sertão

Ilustração: Aquarela de Mauro Andriole.

FERNANDO SABINO




A Última Crônica
                     Fernando Sabino


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.

Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas um a pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.
    
A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(Extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965)

QUARTO DE DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE JESUS, FAZ 50 ANOS


Escrito na forma de um diário, "Quarto de Despejo" teve sua qualidade literária captada pelo jornalista Audálio Dantas, quando fazia uma reportagem na Favela Canindé, em São Paulo e lhe foram mostrados cadernos escritos por uma moradora, Carolina Maria de Jesus. A primeira edição do livro foi publicada sem maiores revisões para aproveitar a levada de sintaxe da autora, uma favelada, com dois anos de ensino formal, e dona de uma narrativa pura e envolvente.
Veja um trecho:

"A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.

Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: Já não bastam as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o depósito. Ia catando tudo o que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recebi seis cruzeiros. Pensei em guardar o dinheiro para comprar feijão, Mas vi que não podia porque o meu eastômago reclamava e me torturava.
(...)
Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos."


Excertos da primeira edição de  "Quarto de Despejo", de agosto de 1960, são encontrados no livro "CENAS DE FAVELA. As melhores histórias da períferia brasileira", uma antologia organizada por Nelson de Oliveira, primeira edição de Quarto de Despejo, publicada em agosto de 1960, pela Editora Francisco Alves.

JORNALISMO ESPORTIVO: OS GOLS CONTRA DA FOLHA DE S.PAULO




Uma das melhores histórias sobre jornalismo e futebol é contada por Lima Duarte, e trata de uma audiência do vice-governador de São Paulo, Porfírio da Paz com o Presidente da República, Juscelino Kubitschek, em 1959. 
O governador Adhemar de Barros viajara à La Paz, para tratar da importação do gás boliviano. Por conta desse compromisso, o vice-governador, autor do hino do SPFC, um tricolor mais do que apaixonado, foi destacado para a missão governamental.
Iniciada a audiência, Juscelino pergunta ao vice-governador:


- E como está São Paulo, governador?
- Vai mal, Senhor Presidente. Perdemos para a Portuguesa de Desportos, dois a zero, um vexame...
Juscelino interrompe, com elegância:
- Estou falando do Estado, governador...
Porfírio, que só pensava em futebol, não compreendeu o aparte e pensou que o presidente falava do estádio, ou seja, do Morumbi, ainda em construção. E lascou essa:
- Será inaugurado ano que vem, num jogo contra o Benfica. Será o maior estádio particular do mundo!
Já impaciente, Juscelino tentou contornar:
- Excelência... Mas eu estou falando no Estado, no Estado de São Paulo!
- Olha Doutor Juscelino... Aqueles Mesquitas não estão nem aí com esportes... Eu prefiro mesmo é a Gazeta Esportiva...

Trazida para os dias de hoje e o Caderno de Esportes da Folha de São Paulo seria o jornal que comporia a ultima parte da piada. Resumidamente, o negócio do pessoal de Esportes é assim: colocam um espessante num fato secundário, adensam uma circunstância lateral, entortam uma estatística, e com isso enchem colunas inteiras com um nada informativo. O custo é alto, porque eles têm de se afastar de muita informação relevante para poder sustentar suas doidas lucubrações.
A falta de tino na construção de manchetes é marca registrada daquela redação. Vejam: “Beijo se torna defesa antidoping”. É o caso de um esportista flagrado em exame antidoping, com resultado positivo para cocaína. Fica-se a imaginar que a linha de defesa relatada na matéria teria se tornado prática vezeira, repetida. Entretanto, é só ler o restante do texto e o leitor descobre que a manchete duela com a notícia: A tal defesa é inédita, foi apresentada pela primeira vez na história e tem pouca ou nenhuma credibilidade, na análise de especialistas.
Mais um exemplo das caneladas da redação está na matéria sobre o jogo entre Palmeiras e Santo André, pelo Campeonato Brasileiro. A Folha reduziu o confronto a um embate entre Marcelinho Carioca, atleta do Santo André, de 34 anos, contra nada mais nada menos do que toda a equipe de Palestra Itália. Vejam a delirante síntese: “Palmeiras anula veterano e vence”. A ideia que a manchete passou foi a de que onze jogadores impuseram derrota a um homem. Seguindo nas suas miragens, a redação arremata, com destaque: “Equipe comandada por Jorginho supera Marcelinho”. Na sanha de dobrar a realidade a ilusões oníricas, e forçar epopéias, o jornal exalta “um duelo especial entre dois cerebrais”. Valoriza o derrotado, como que a trazer subliminares lições de moral, e conta que Marcelinho fez “lançamentos e passes milimétricos” de que nada adiantaram. Todo um mundo de representação para mostrar um jogo absolutamente normal, uma ordinária partida de futebol que terminou com resultado de um a zero, vitória do Palmeiras sobre o Marcelinho FC, digo, Santo André EC.
E um merecido cartão amarelo veio da Casa: O ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva comentou as derrapadas do Caderno. Veja a opinião do ombudsman:

“ESTE JORNAL demonstra ser adepto da 'teoria do grande homem', formulada em meados do século 19 pelo historiador e filósofo escocês Thomas Carlyle. "A história do mundo não é nada mais do que a biografia de grandes homens", dizia, em sua inabalável admiração por heróis, fossem reis, políticos, militares, poetas ou santos.
Assim, na quarta-feira, ao apresentar a final da Copa do Brasil, a manchete do caderno esportivo foi: 'Ronaldo tenta preencher lacuna em seu currículo'. Para a Folha, o jogo não era entre Corinthians e Internacional, mas entre Ronaldo e seu currículo.
O mais importante não era o time que foi rebaixado da elite do futebol brasileiro no ano passado estar para ganhar um de seus títulos mais importantes. Era se Ronaldo ia colocar na sua lista de conquistas a de um campeonato disputado no Brasil.
Não se dá muito valor ao papel do técnico, dos dirigentes, dos outros jogadores, da torcida, nem se dá atenção às circunstâncias históricas, econômicas, esportivas que levaram o Corinthians ao sucesso. Foi o ‘grande homem’ que venceu. O resto é resto.”


Cachorro faz mal a mulher”. Esta manchete, clássico caso do jornalismo ignaro e leviano, conta a história da moça que comeu um cachorro quente numa barraquinha pouco confiável e teve de buscar socorro no hospital. Incrível, mas até para perto disso o Caderno de Esportes está se encaminhando. Pois ao tratar do acidente que vitimou Felipe Massa, na Hungria, o pessoal dos esportes, em confronto com o modo correto com que o jornal noticiou o fato na primeira página, investiu-se em mais uma gracinha, desta vez tenebrosa e talvez motivada por sentimento de morbidez. A manchete saiu assim: “Massa é nocauteado em plena pista”. Isso mesmo: o piloto foi nocauteado na pista do Circuito de Hungaroring.
Um milhão de verbos e adjetivos para definir a ação e o resultado de um trauma causado por uma peça acidentalmente desprendida de um carro a 300 km por hora, e a Folha vai buscar um termo prá lá de específico, uma palavra cuja utilização fora do boxe só se justifica quando muito, mas muito bem contextualizada. Tudo bem que nocaute passe a idéia de agravo, de lesão; isso não se discute. Mas é elementar que o termo está usualmente associado a um revés sofrido no plano de uma disputa. Nocaute jamais guarda relação com evento fortuito. Nocaute, isso é primário, comunica-se com derrota, significa um golpe contra o qual a vítima poderia, se tivesse qualidades, se opor. De uma só vez deselegante, apelativo e vulgar. Datena, Ratinho e Márcia Goldsmith (que nos perdoem os citados) têm seus iguais na imprensa escrita. A Folha não merece. Ninguém merece.
Manchetes desinformativas são presença constante. Os exemplos que trouxemos foram pinçados de matérias publicadas no curso de menos de um mês. O último esculacho, sobre o acidente de Felipe Massa, saiu na edição desta semana. Esquecem que são jornalistas, e não rapsodos.

A história de Lima Duarte foi contada no seu programa na Rádio Cultura AM de São Paulo, apresentado das cinco às seis da manhã. Talvez o melhor programa de rádio dos anos 80. Lima Duarte tem um excelente repertório com histórias de futebol.
A matéria sobre o beijo muito louco foi publicada no dia 14/07/09. O jogo entre Palmeiras e Santo André (Eles diriam: Onze homens contra um velho xerife) saiu no dia 19.07.09. A análise do do ombudsman deu na edição do dia 05.07.09.

Saiba mais sobre assunto acessando o blog Futebor. Lá você encontrará outra crítica do ombusman da Folha, publicada no dia 16.08.09. Lins da Silva aponta que o destempero da editoria de esportes não é coisa circunstancial, e que "...os exemplos são inúmeros...".

A SALVAÇÃO PELA LITERATURA. Crônica de Uriano Mota




A salvação pela literatura
Urariano Mota

Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se impunham.

- O que eu ganho com isso, professor?

E com isso, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tinha para quem me fizera homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco ganhava a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a espécie.

- O que eu ganho com isso, professor?

Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas a estes periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. (Há um relato sobre isso em “Histórias para adolescentes pobres”.) Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Mas tudo bem, eu me dizia, que se dane o nome, vence a literatura.

No entanto, agora refletindo enquanto escrevo, descubro que ainda assim havia uma grandiosa derrota nessa vitória de extremo recurso. Eu, o professor, falhava como professor. Quero dizer, eu não acendia a chama em seus corações como um fogo de pentecostes, com o calor de que a literatura é um valor permanente, alto e tão alto que por vezes parece substituir a própria vida. Quero dizer, para ser mais preciso: eu não fazia aqueles adolescentes atirarem-se aos livros, que seriam uma casa, um céu, um amigo, uma amiga, um amor, a namorada. Os jovens se quedavam por momentos diante do relato e depois mudavam de assunto, para outra coisa mais urgente. Afinal, jovens precisam comer, vestir, beber, e pegarem em namoradas mais concretas que um soneto de Camões.

O professor falhava porque prática, grosseira e opressora era a onipresença do mundo das necessidades. A literatura não se inscrevia como uma prática nesse mundo. E prática aqui em dois significados: como um hábito e como uma intervenção útil, pragmática. A literatura se opunha ao mundo prático. Na visão de todos, ela era como um luxo, um caviar... mas me expresso mal, porque o luxo é desejado, o caviar é querido. Era muito pior: a literatura roubava o tempo que deveria estar empregado em outra coisa. Que coisa? Qualquer coisa, coisa qualquer. Os passatempos mais estúpidos seriam mais necessários que essa inominável que furtava energias, dinheiro e ações dignas de serem vividas.

- Em vez de estar lendo, você devia...

Então eu não mais sorria. No mais íntimo de mim eu me julgava, eu me sabia certo como um neurótico. Tudo era o contrário do que eu pensava, mas eu estava certo. Certo como um neurótico silencioso. Pois que louco eu seria a proclamar as venturas da literatura quando todas e quaisquer coisas eram mais venturosas?

Esta semana uma jovem míope, tímida, com 19 anos, deu uma substância e um conforto a essa qualquer coisa, coisa qualquer que para nada serve, que furta o tempo e deixa os seus cultores neuróticos, malucos ou esquizofrênicos. Na altura em que a mocinha atravessava um momento difícil, prestou concurso para uma bolsa de estudo na Alemanha. Pois esta semana saiu o resultado: ela foi um dos três jovens escolhidos. E por isso viaja, e por um ano terá bolsa líquida e livre de 600 euros, e mais universidade, casa e alimentação. Mas como, eu perguntei a ela, como você conseguiu, se não é uma falante de alemão? Ao que ela, em seu espírito verdadeiro, me respondeu:

- Eu fui salva pela literatura. Em minha carta contei como Goethe entrou em minha vida.

Ah, sabem? Hoje é domingo, faz sol, tudo é luz. O neurótico aqui dedica à jovem esta crônica.


Conheça um pouco sobre Uraniano Mota e conheça seu blog
O artigo foi retirado do site NovaE

CINCO TIROS ABREM NOVOS NEGÓCIOS. Paulo Francis comenta o assassinato de John Lennon.



A propósito da morte de Michael Jackson, oportuna a leitura deste artigo de Paulo Francis. Trata do assassinato de John Lennon e daquilo que o jornalista definiu como canibalismo de celebridades . Só o título do artigo já encerra um tratado sobre o assunto.Publicado na Folha de S. Paulo de 10.12.1980.

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CINCO TIROS ABREM NOVOS NEGÓCIOS
Paulo Francis

John Lennon, compositor, cantor, músico, o “pai” dos Beatles, foi assassinado à uma hora da manhã (hora de Brasília) de ontem, por um vagabundo, Mark Chapman, que disparou nele seis tiros de um revólver 38, acertando cinco. O crime aconteceu no saguão de um dos prédios mais famosos de Nova York, a oeste do Central Park, o Dakota (que a maioria dos brasileiros conhece como cenário do filme de Roman Polanski Rosemary’s baby, com Mia Farrow e John Cassavetes). Lennon estava acompanhado da mulher, Yoko Ono, e dois cavalheiros ainda não identificados. Chapman esperou por ele horas no saguão, sem ser incomodado pelos agentes de segurança do prédio (cuja maioria dos moradores é celebridade, gente como Lauren Bacall etc.) que provavelmente, como é freqüente em Nova York, estavam bêbados ou dormindo. Lennon tinha 40 anos. Chapman, de Atlanta, Geórgia, conterrâneo de Jimmy Carter, tem 25.

A polícia, chamada ao local, apreendeu facilmente Chapman, que largou o revólver depois de esvaziá-lo, sorrindo, certo (e está certíssimo) que do anonimato se tornará, como Lennon, uma celebridade. Esse o motivo aparente do crime. O canibalismo de celebridades que é rotina neste país (e no Brasil e todo o mundo ocidental), graças a um sistema de comunicações que evita assuntos sérios, mas que fornece um “circo” permanente, obsessivo, avassalador, sobre a vida dos bem-sucedidos e ricos, excitando sentimentos contraditórios, da adoração bocó dos fãs à frustração homicida, que às vezes se manifesta a la Chapman. É tolice atribuir o crime à violência de Nova York. Chapman estava em Nova York havia apenas duas semanas, proveniente de Atlanta (trabalhou um tempo no Havaí, como guarda de segurança, vulgo “vigia”). Em Nova York não é possível comprar armas de fogo sem extensa e prévia investigação policial (estou falando do mercado legal, naturalmente). Em Atlanta, onde recentemente 12 crianças negras foram assassinadas, é possível comprá-las em qualquer armazém…

A polícia de Nova York é treinada em paramedicina. Tentou ressuscitar Lennon, aplicando-lhe técnicas recomendadas, sem sucesso. Uma ambulância recolheu Lennon, que ainda falou aos médicos, dizendo quem era (”Meu nome é John Lennon”) mas foi pronunciado “D.O.A.”, morto ao chegar, no Hospital Roosevelt, a 13 quarteirões do Dakota. A causa: hemorragias incontroláveis.

A nova celebridade, Chapman, está presa. Não precisa declarar nada. Pode exigir a presença de um advogado. Se não tiver dinheiro para pagá-lo, o Estado paga. É a lei. Se for chamado de assassino pela imprensa, um juiz poderá anular o julgamento, considerando-o preconceituoso contra o réu, presumindo-o culpado antes que um júri o condene ou absolva. É também a lei. Mas o provável é que se determine que Chapman é um psicopata, ou seja, passará o resto da vida num manicômio judiciário, vendendo direitos de lhe filmarem a vida, “escrevendo” memórias, vendendo entrevistas etc. Neste país tudo é faturável. A polícia já o chamou de “whaco” (demente, em gíria), pois a polícia conhece como ninguém como funciona o processo judiciário americano.

O canibalismo continua depois da morte. Fãs histéricos cercam o Dakota, cantando músicas dos Beatles. Ringo Starr, o primeiro dos ex-companheiros de Lennon a chegar aos EUA, de Londres, teve de ser protegido pela polícia, em face da malta de fãs que queriam depredá-lo, amorosamente, claro… A aventureira japonesa Yoko Ono, herdeira da fortuna dos 150 milhões de dólares de Lennon, também está representando “Madame Butterfly”, vítima trágica do destino, que lhe roubou o homem amado. Também há bons negócios à vista para a viúva. Todo mundo está faturando, de estações de rádio à TV, que tocam incessantemente as músicas dos Beatles e continuam o canibalismo do cadáver. É a sociedade do consumo, em seu aspecto mais grotesto.

John, Paul, Ringo, George, filhos da Guerra Fria

Em nenhuma época um conjunto de música popular fez tanto sucesso como os Beatles. De certa maneira, eles são o símbolo mais à mão da chamada contracultura da década de 1960. Nunca tiveram o prestígio entre as elites do movimento de um Bob Dylan (cujas letras parafraseavam poemas de Eliot e outros heróis do modernismo da alta cultura. Hoje Dylan é um “renascido em Cristo”, à la Jimmy Carter, apesar de judeu de ascendência), ou de Jimi Hendrix, considerado o supremo inovador do rock, que morreu, como sua par, Janis Joplin, de uma dose excessiva de drogas. E só no início, que pouco chegou ao grande público, os Beatles tinha a agressividade da classe trabalhadora inglesa característica dos mais famosos produtos dos “Rolling Stones”, de Mick Jagger (cuja “The Citadel” nos diz mais sobre a guerra do Vietnã do que o excelente filme de Francis Ford Coppola, “Apocalipse agora”). Os Beatles se sofisticaram muito sob a mão de um gerente de gênio, Brian Epstein, outro viciado em drogas, que se suicidou em 1967, e que, homossexual, parecia exercer uma tutela absoluta sobre os quatro Beatles, Lennon, Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison.

O segredo dos Beatles, depois de “peneirados” por Epstein, é simples: limpeza. O rock nasceu uma mistura de jazz e música montanhesa americana, sob o signo das cadeiras rebolantes de Elvis Presley. Foi, apesar de adorado pela garotada, uniformemente condenado pela classe dirigente americana, de que Time era um dos símbolos (até 1968, quando perdeu quase todo o prestígio), e Time escreveu longos editoriais sobre a imoralidade de Elvis, “O Pelvis”, como o apelidaram.
Quando os Beatles chegaram ao quarteto final, depois de se chamarem “The Quarrymen” e outros nomes, eles, apesar de virem das favelas de Liverpool, faziam músicas românticas, chorosas, sem qualquer sofisticação de contexto e, depois que Epstein os vestiu de ternos e lhes aparou os cabelos (relativamente), os Beatles produziram um rock acessível aos valores da classe média, sem os “excessos” prévios e posteriores de Elvis e Jagger, respectivamente.

Eles se sofisticaram bastante musicalmente, em Sgt. Pepper’s, um disco divertido, de “Lucy” (supostamente sobre LSD, mas Lennon em entrevista a Playboy diz que foi tirado de Alice no País das Maravilhas. Ele pensa que isso confere inocência à música. Alice é bem mais pervertida do que LSD…), mas não há dúvida que foram as composições mais simples, “Love me do”, “I wanna hold your hand”, “Help” etc., que lhes angariaram os milhões de fãs, que lhes garantiram a venda de 250 milhões de discos, ou mais, o que levou John Lennon a dizer que o grupo era mais popular que Jesus Cristo. Isso irritou muita gente. Nunca entendi por quê. Jesus não foi popular em vida. Terminou crucificado. Jesus não penetrou no mundo judeu, muçulmano e ateu. Os Beatles penetraram até na URSS (clandestinamente, no mercado negro, mas aos milhões…).

O charme da música deles sempre me escapou, o que deve ser um problema geracional (se bem que o antigo Dylan e o Jagger de “The citadel” e “Helter skelter” me diziam muito, não sempre agradável) de quem foi educado sob jazz “hot” e “cool” e o rápido mas inesquecível “bepop”, talvez o maior salto qualitativo da música popular neste século.

Mas, sociologicamente, eles sempre foram interessantes. Aquela choradeira infantil que os celebrizou, o romantismo quase hilariante de baladas como “Yesterday” representavam certamente o estado de espírito de uma geração que emergiu na década de 1960, depois que as tensões totalitárias da guerra fria se abaterem quando Kennedy e Kruschev decidiram não destruir o mundo em face da presença de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, 1962.

Não houve o estouro do pós-guerra de 1919 no outro pós-guerra de 1945. Isso porque passamos diretamente aos terrores ainda maiores, nucleares, da guerra fria, que Kennedy e Kruschev diminuíram em 1962, permitindo assim uma verdadeira revolução de costumes, “revolução cultural”, da década de 1960.

A palavra infantilidade não é aqui usada insultuosamente. As crianças da década de 1960, nascidas sob o ruído dos aviões a jato, dos mistérios da eletrônica, sob o terror nuclear, sem qualquer acesso ao poder democrático, já que o poder, dos EUA à URSS, passara a ser exercido por burocratas sem cara, grupos de “experts” cuja sapiência era incontestada, crianças que nasceram quando os conceitos de religião, família e outras âncoras tradicionais haviam desaparecido sob o impacto da revolução capitalista-tecnológica-tecnocrática, tentaram criar o mundinho delas, de “quero segurar sua mão” e “socorro” (este quase um apelo direto). Renegaram a maneira de vestir, a maneira de pensar, a suposta ética de trabalho, de competição (a corrida entre ratos), o totalitarismo cultural da minha e precedentes gerações. Era, claro, uma revolução impossível, pois, em verdade, foi faturada pelas mesmas forças capitalistas, tecnológicas e tecnocráticas que dirigem o mundo. A contracultura nada mais foi que uma variante da sociedade de consumo. As pobres crianças tentaram saída, recorrendo ao misticismo do Leste (no pseudomisticismo de Herman Hesse, na maioria dos casos), ao uso das drogas, o que equivale a montar num tigre (Quem monte num tigre acaba no estômago do tigre…) e, finalmente, encontraram uma causa na guerra do Vietnã, em que era possível, enfim, lutar contra (não por) alguma coisa, a crueldade inominável dos EUA, do establishment, no sudeste da Ásia.

A música foi naturalmente a linguagem mais acessível a essa geração. O socialista Michael Harrington, num dos mais agudos ensaios que já li, observa que os fanhos de Bob Dylan eram uma forma de contestar a cultura cruel que era capaz de criar um Beethoven (Quem pode melhorar Beethoven?) e os horrores tecnológicos do “napalm”, de Hiroxima e Nagasaki. As crianças procuraram um estilo delas, do blue jeans aos cabelos longos, que imaginavam contestação, enquanto os fabricantes de jeans e outros produtos da contracutlura, como a bolinha, diziam “Business as usual”, ou “Caixinha, obrigado”.

Mas crianças envelhecem, Lennon está certo em dizer à Playboy que os Beatles não fazem mais sentido em 1980, que os Beatles eram os anos 60, ainda que o verdadeiro motivo dele seja o ódio incontido que revela nesta mesma entrevista contra seu ex-companheiro Paul McCartney (ele e John criaram a maioria das composições mais célebres dos Beatles), porque McCartney continua sendo o músico mais popular do mundo, enquanto que ele, John Lennon, teve uma década de 1970 repleta de fracassos. O último disco que lançou Double fantasy, estava fazendo um certo sucesso e um compacto do dito, “Starting over”, está entre os dez mais vendidos. Mas Lennon permanecia muito atrás de McCartney. Ringo e Harrison nunca tiveram o mesmo destaque.

O último símbolo de um sonho impossível

Depois da morte de Epstein, os Beatles começaram a se dissolver. São dois os motivos: disputas de espólios da empresa em que eram sócios, a “Apple”, e, principalmente, as mulheres de John e Paul, Yoko Ono e Linda Eastman. Linda é herdeira da Eastman-Kodak, o que dispensa comentários. Foi “groupie” de grupos de rock, ou seja, prestava serviços de cama a qualquer tamborineiro famoso, a pedidos. Conseguiu porém fisgar Paul McCartney e lhe domina a vida, inclusive participando do conjunto dele, Wings, apesar de não ter nenhum talento. É mais velha que Paul. Ele parece até hoje uma menina. Esse tipo de mulher é o que se chama eufemisticamente “órgão de alicate”. “Prende” o homem dela em partes vitais. E Linda não se deu com sua equivalente Yoko Ono, que John Lennon, órfão de mãe, bebê e abandonado pelo pai, chamava (e o que mais poderia ser?) de mamãe. Foi o choque entre Yoko e Linda que provavelmente destruiu os Beatles. Yoko, japonesa, se autodescreve como “escultora” e da “alta sociedade de Tóquio”. É quase certamente uma gueixa, mas de “alicate”, e dominou completamente a vida de Lennon, o que ele confessa prazerosamente na entrevista à Playboy. Freud explica. Sempre explica.

Se Yoko se arrumou, soube dar a John Lennon fortuna e proteção. Escrevi que Lennon deixa cerca de 150 milhões de dólares. Fracassando em músicas novas nos anos 70 (a começar pelo ridículo LP de 1969 em que ele e a teratológica Yoko posam nus na capa e contracapa, as fotos trazendo má reputação à pornografia), ele, sob a direção do alicate de Yoko, aplicou o dinheiro Beatle, que continua e continuará rendendo, em mansões em Palm Beach, Flórida, Long Island, numa série de fazendas totalizando 1.600 acres n norte de Nova York, em valiosas vacas Holstein (uma foi vendida outro dia por 256 mil dólares…), num iate de quase duzentos metros e no apartamento do Dakota de 28 cômodos.

No auge dos Beatles, Lennon favorecia causas radicais. Marchou contra a guerra do Vietnã. Fez experimentos perigosos com drogas, filmes que contrariavam a moral vigente (um sobre o próprio pênis), se tornou feminista etc. Sob Yoko, milionário, parecia mais criatura de astrologia, comedor de macrobiótica, “mãe de família” (ele cuida do filho do casal, Sean, de 5 anos, enquanto ela dirige os negócios da família), e, coisa inconcebível num radical, chagou a dar uma contribuição de mil dólares para a compra de coletes à prova de bala para a polícia de Nova York, a mesma polícia que sob o pretexto de que era drogado tentou deportá-lo até que todo mundo depôs a favor dele e conseguiu permanecer em Nova York, a polícia que não o protegeu do assassino quando morreu na cidade que mais amou.

A morte dele é o fim de uma época, talvez a última que conheçamos em que uma geração de jovens talentosos, como os Beatles, tentou humanizar o nosso mundo de poderes impiedosos, impessoais e letais. Que John Lennon tenha morrido um milionário egoísta, rancoroso, vivendo no casulo de uma japonesa aventureira, não diminui as boas intenções iniciais dos jovens revoltosos dos anos 60, ainda que o fim dele, mesmo antes de morrer, também revele a ingenuidade dos métodos e aspirações que abraçaram.

Lennon baniu Reagan, Brejnev, Israel, Síria e Jordânia do centro das notícias. Talvez porque a maioria das pessoas reconhecesse nele um ser humano, enquanto que esses outros problemas não podem ser tocados pelo cidadão comum, que, se interessado neles, é submetido à dieta de “press release” dos poderosos. Com Lennon se foi, não só uma era, nos parece, mas um anseio de simplicidades que se tornaram aparentemente impossível em nosso tempo.

Veja onde anda Mark Chapman.

AS FARRAS DE BERLUSCONI E A REPÚBLICA ITALIANA



O termo república define o modelo de convivência social que reconhece como de todos os meios materiais e imateriais envolvidos na organização estatal. O bom agente público há de cuidar dos bens a si confiados com zelo extremo e destinação pública. E não poderá valer-se do exercício do mandato popular para desfrute pessoal.
Pois é na Itália, justamente no berço da República, que o conceito é mais vergastado, nos dias que passam. Com afrontas de magnitude que justificou grave alerta feito pelo jornal espanhol "El País". Segundo o diário, as estrepolias do primeiro-ministro Berlusconi alcançam dimensão de grau a pôr em risco a ordem jurídica e a democracia na terra da bota.
Envolvido em uma sequência de aventuras sexuais em parte subvencionadas com dinheiro público, impondo censura e a força descomunal do seu vasto arsenal midiático, Berlusconi empalma o poder com a sensação de monarca, deus e soberano. A ponto de usar de suas influências para impedir a publicação, na Itália, de fotos de uma festinha como aquelas das casas de banho da antiga Pompéia. E convencer uma editora a não publicar livro de Saramago.
Publicamos o editorial em que o "El País" enuncia os motivos para a publicação de fotos duma festa prá lá de desinibida, numa mansão do Capo: Longe de se ocupar da vida privada de Berlusconi, justamente sua conduta de envolvimento entre o público e o privado foi a razão que empolgou o jornal a denunciar os desvarios do chefe de estado. O texto é uma ode ao jornalismo.
Para se ter ideia do quanto esse homem é nafasto, o fotógrafo que fez as fotos dignas de ornar preliminares de revistinhas suecas, disse temer mais Berlusconi do que as milícias colombianas.


BERLUSCONI AL DESNUDO

Que no se equivoque Silvio Berlusconi: es la prensa democrática la que respeta su intimidad y él quien no deja de ponerla en entredicho. Porque la publicación de las fotografías de sus fiestas privadas no obedece a ningún intento de enjuiciar su moral como ciudadano, sino al propósito de demostrar que él, como primer ministro, está intentando convertir el espacio de la política democrática en una simple prolongación de sus relaciones de amistad y de sus entretenimientos.

Eso es exactamente lo que, según sus propias declaraciones, ha hecho al elaborar las sucesivas listas electorales de su partido e, incluso, a la hora de asignar responsabilidades de Gobierno. Y otro tanto cabe decir del uso de las facilidades que el Estado pone a disposición del primer ministro para cumplir con sus responsabilidades institucionales. Transportar invitados a fiestas privadas no es tarea de los aviones oficiales, poco importa a estos efectos que se trate de bailarinas o presentadoras de televisión. Y el hecho de que el primer ministro hiciera aprobar en 2008 una ley que abría los vuelos de Estado a cualquier acompañante no le ofrece una cobertura jurídica, sino que evidencia un flagrante abuso de poder.

La prensa italiana ha denunciado el escándalo, y la respuesta del primer ministro no ha consistido únicamente en negar o en trivializar los hechos, presentándose como un paternal protector de muchachas en las que asegura apreciar especiales talentos artísticos o políticos. Recurriendo a la confusión entre los intereses públicos y privados, Berlusconi ha intentado, además, desacreditar a ciudadanos que, como su propia mujer, estaban en condiciones de corroborar las denuncias. Ese género de presiones son la prueba de que, bajo Berlusconi, la libertad de expresión se encuentra amenazada. La fiscalía italiana ha secuestrado, por otra parte, la totalidad del archivo del fotógrafo que captó las imágenes.

Con este escándalo Berlusconi queda al desnudo, pero no como ciudadano, sino como político. Si hasta ahora sus salidas de tono se habían tomado a broma, hoy existen nuevas y poderosas razones para advertir que lo que el primer ministro está poniendo en juego es el futuro de Italia como Estado de derecho. Y una Italia que se deslice por la pendiente a la que la está arrastrando Berlusconi no es sólo un motivo de preocupación para los italianos, sino para todos los europeos.


Publicado no "El Pais", edição do dia 05.06.09. Ilustração: Charge de André Carrilho.
Conheça as fotos publicadas no El País. Conheça um pouco sobre o fotógrafo Antonello Zappadu e suas preocupações. Mais sobre Berlusconi na análise de Rachel Donadio, correspondente do New York Times em Roma.

A ATUALIDADE DO PENSAMENTO DE MARX. Entrevista com Eric Hobsbawn


“Marx previu a natureza da economia mundial no início do século 21, com base na análise da ‘sociedade burguesa’, cento e cinqüenta anos antes.
Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.”.


SIN PERMISO - Duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”. Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?

ERIC HOBSBAWM. Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado. Marx previu a natureza da economia mundial no início do século 21, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.

A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.

Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.

SIN PERMISO. Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?

ERIC HOBSBAWM. Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.

As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.

SIN PERMISO. Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século 21, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?

ERIC HOBSBAWM. Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.

Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.

No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso.

Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.

SIN PERMISO. Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?

ERIC HOBSBAWM. Desde o meu ponto de vista, os ''Grundrisse'' provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later).

ERIC HOBSBAWM. No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século 19, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?

ERIC HOBSBAWM. Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.

SIN PERMISO. Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?

ERIC HOBSBAWM. Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século 19 e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século 20. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.

Entrevista publicada em outubro de 2008 no Portal Sin Permisso, respeitável respositório de textos de ciências humanas. Vale a visita. A tradução é de Marco Aurélio Weissheimer, da Agência Carta Maior.

UM ARTIGO: "A Arte de Recusar um Original", de Camilien Roy.



NÃO, OBRIGADO!
(Eduardo Simões)

MANUSCRITO REJEITADO DÓI tanto quanto amor não correspondido. Ao menos é o que sugere o canadense Camilien Roy, 45, autor de "A Arte de Recusar um Original", livro em que um fictício aspirante a escritor narra suas investidas infrutíferas para publicar seu primeiro romance por meio das 99 cartas de recusa que recebeu.
A forma é uma homenagem às "contraintes littéraires" (experimentações literárias com restrições, por exemplo, temáticas) do escritor francês Raymond Queneau (1903-1976), autor de "Zazie no Metrô" (adaptado para o cinema por Louis Malle) e "Exercices de Style" (exercícios de estilo), livro que narrava uma mesma história de 99 modos diferentes, classificados segundo o estilo ("vulgar", "parcial" etc.).
Já o conteúdo é uma bem-humorada maneira de Roy criticar a um tanto enfadonha e nada pessoal padronização das cartas de recusa das editoras. Daí seu esforço criativo que inclui um haicai, uma peça de um só ato e até um sistema de resposta eletrônico ("Você teclou 8? Lamento! A decisão da equipe de leitura foi NEGATIVA!").
A ideia de escrever o livro, diz Roy à Folha, veio quando ele recebeu uma carta de recusa de um "editor importante" tão mal fotocopiada que o texto e o logotipo da editora estavam inclinados. "Mas o livro não é um acerto de contas com o mundo editorial.
E sim um modo de, pelo menos uma vez, não ser aquele que recebe as cartas, mas quem as escreve. E ainda de mostrar aos leitores que a publicação de um livro por uma editora respeitável é uma coisa difícil e por vezes cruel".
Para o canadense, autor de dois romances, a mais severa das recusas é a indiferença, que ele representa em seu livro com uma página em branco.
A única de fato positiva seria, por incrível que pareça, um "mal entendido": uma carta enfim elogiosa e incentivadora, enviada por um comerciante, que recebeu o livro por engano.
As cartas verdadeiras
Vivian Wyler, 54, diretora editorial da Rocco, que publicou "A Arte de Recusar um Original", conta que a editora recebe cerca de 40 manuscritos por semana.
Se o livro não é bom, ela é a favor da carta de recusa padrão, pois não haveria "a menor chance de dizer que é ruim, de uma maneira mais suave para o escritor, sem soar falso". Enviada em até 60 dias, em linhas gerais a carta agradece, mas diz que o original não se enquadra na linha editorial.
Há, porém, os meios-termos: "Nos casos em que temos em mãos um original com quase tudo o que deveria ter, mas que não chegou lá, aí mandamos uma cartinha indicando os problemas e as qualidades, e deixando claro que, se o escritor quiser trabalhar o manuscrito de novo, pode reapresentá-lo".
Wyler diz que as cartas de recusa da Rocco não são tão engraçadas quanto as de apresentação que chegam à editora com os originais. Muitas vezes confessionais, elas citam preferências literárias dos neoautores, o modo como começaram a ler e a escrever etc.
Uma dessas missivas rendeu uma piada interna na Rocco: uma escritora do interior de Minas Gerais defendeu seu livro, e sua pretensa vocação para a literatura, dizendo: "Gosto disso, sra. Wyler." A frase acabou virando mote de uso variado na editora.
EDITOR SUGERIU A TEZZA TOMAR "UMAS PINGAS"
Autor de "O Filho Eterno", romance de fortes tintas autobiográficas, que venceu cinco prêmios literários em 2008, Cristovão Tezza, 56, já foi "recusado", quem diria, por ser pouco pessoal. Tezza tinha 18 anos e acabara de apresentar à editora Brasiliense seu primeiro livro, "O Papagaio que Morreu de Câncer". A recusa, assinada pelo editor Caio Graco Prado, criticava o neófito por ter fugido "um bocado do "pessoal" para descrições enormes, na maioria das vezes inúteis".
"Quando li a carta, achei que minha vida de escritor tinha acabado. Bobagem. E ele disse umas coisas legais ali", diz Tezza, que recebeu uma curiosa sugestão de Caio Graco para dar um tom mais pessoal ao livro: "Se ajudar, umas pingas desarmam as defesas e podem contribuir". Daí para frente, afirma o escritor, vieram apenas mensagens padronizadas, ou, mais frequentemente, o silêncio.
Oito anos de recusa
O escritor Marcelo Mirisola, 42, "gaba-se" de ter "nas costas oito anos de cartas de recusa", que ele guarda numa mala. Ele afirma que seu segundo livro, "O Herói Devolvido" (sem trocadilho!), foi rejeitado por uma editora de São Paulo "por conter muito palavrão".
Para Mirisola, que diz ter recebido desculpas "esfarrapadas" como "não se encaixa em nossa linha editorial" ou "nossa agenda está cheia", muitas vezes "ficava claro que ninguém lia nada". A fim de testar as editoras, o escritor chegou a enviar originais com as folhas coladas: "Voltaram do mesmo jeito".
O escritor Santiago Nazarian, 31, que nunca recebeu uma carta de recusa, mas escreve pareceres de livros em inglês para editoras brasileiras, defende que, além de apontar os pontos positivos e negativos de um livro, tais pareceres deveriam ter mais espaço para uma "opinião mais verdadeira", na linha "achei uma merda".
"Acho que o parecer pode e deve ser mais sincero do que as cartas de recusa, não tendo medo de detonar um livro quando não gosta, ou de demonstrar seu entusiasmo quando adora. Com autores, é preciso ser um pouco mais delicado. É preciso pensar que a pessoa colocou muito do tempo, paixão e talento, mesmo quando ínfimo, lá."
O duplo sim de Hatoum
O premiado escritor Milton Hatoum também não relata recusas. Mas um curioso caso de dupla aceitação. Ele conta que havia terminado o manuscrito de "Relato de um Certo Oriente" em 1987, quando morava em Manaus. O texto ficou de molho alguns meses, até que um editor do Rio ligou para ele e perguntou se tinha algo.
"Mencionei o "Relato", enviei os originais, e um mês depois ele disse que ia publicá-lo. Em 1988, ganhei uma bolsa e vim para São Paulo. A Companhia das Letras me perguntou se eu tinha algum manuscrito e falei do "Relato". O editor do Rio já estava em outra editora, mas o texto estava no prelo. E eu nem sabia disso", diz. "Como o prazo para publicação havia expirado, troquei de editora na última hora, e o "Relato" só foi publicado em abril de 1989. Dois anos de espera e um baixo grau de ansiedade valeram a pena."

(Folha de S. Paulo, 21.02.09)

Três meses depois: Quando publicamos este artigo, não conhecíamos o livro. Agora, lido, garantimos que a resenha, bem costurada, supera em muito a obra que retrata. Esqueça do livro. Fica a lição do perigo de falar sem conhecer, razão da manutenção desta postagem no ar.