"O TIGRE BRANCO" - Aravind Adiga - UM TRECHO

Escrito numa linguagem fluída, cativante, O TIGRE BRANCO nos conta como o protagonista, saído da região mais atrasada da Índia, chamada de "Escuridão" transforma-se de um atendente de uma casa de chá a motorista (uma ascenção e tanto, numa sociedade herdeira da tradição estamental) e, depois, num grande empresário "do ramo da terceirização". Paralelamente a este mundo ficcional, o autor pinça, com profundidade, aspectos da dramática realidade do país: corrupção, muita corrupção, miséria que não acaba, sistema de castas, relacões sociais e familiares, saúde pública (!), a "democracia" e as eleições fraudulentas, enfim, uma porção histórias sobre um lugar que nos é apresentado no mais das vezes sob uma aura de só misticismo e encantamento. A realidade é outra, bem diferente, como se nos mostra a obra cuja capa você poderá ver na coluna ao lado. O livro o aproxima da Índia real, não aquela que os Hare Krishnas fantasiam nas esquinas, entre uma e outra tungada contra a economia popular.
Vamos deixar prá vocês dois trechos do livro: o primeiro, nesta postagem, relata a pungente peregrinação do protagonista, então menino, até às margens do Ganges, seguindo o féretro da mãe, a caminho de ser cremada. É uma passagem do cacete. Nos perdoem os leitores pela expressão, mas, assim, deixamos bem claro nosso pouco ou nenhum tato para a crítica literária e nosso vivo interesse em não fazer crítica literária. Numa próxima postagem, falaremos sobre castas.



"SEI TUDO SOBRE O GANGES, Excelência. Quando tinha seis, sete ou oito anos (ninguém na minha aldeia sabe exatamente quantos anos tem), fui ao local mais sagrado das margens do rio: a cidade de Benares. Lembro de descer os degraus de uma estradinha que seguia colina abaixo, na cidade santa de Benares, acompanhando o cortejo fúnebre que levava o corpo de minha mãe até o Ganges.
Era Kusum, minha avó, quem ia na frente. Aquela velha sonsa! Tinha a ma­nia de esfregar os braços com bastante força quando estava contente, como se fossem pedaços de gengibre que estivesse ralando para liberar os sorrisos. Não tinha mais um dente na boca, mas isso só tornava o seu sorriso ainda mais dissimulado. E foi sorrindo que conseguiu mandar na casa; filhos e noras tinham medo dela.
Meu pai e Kishan, meu irmão, vinham logo atrás, segurando uma das pontas da liteira de bambu gue transportava o cadáver; depois, vinham meus tios, Munnu, Jayram, Divyram e Umesh, segurando a outra ponta. O corpo de minha mãe tinha sido embrulhado num pano de cetim cor de açafrão, da cabeça aos pés, e estava coberto de pétalas de rosas e de guir­landas de jasmim. Acho que, em vida, ela nunca teve nada tão bonito para vestir. (A morte de minha mãe foi tão grandiosa que tive a certeza de que a Sua vida deve ter sido muito infeliz. A minha família se sentia culpada por alguma coisa.) Minhas tias, Rabri, Shalini, Malini, Luttu, Jaydevi e Ruchi, passaram o tempo todo rodopiando e batendo palmas para que eu as alcan­çasse. Lembro que fiquei balançando as mãos e cantando: "O nome de Shiva é a verdade!"
Passamos por um templo atrás do outro, rezando para um deus atrás do outro, até entrarmos numa fila, entre um templo vermelho, dedicado a Ha­numan, e um ginásio descoberto onde três fisiculturistas levantavam pesos enferrujados bem acima da cabeça. Antes mesmo de ver o rio, pude sentir o seu cheiro: um fedor de carne podre que me chegava pelo lado direito. Cantei então ainda mais alto: "... a única verdade!"
Ouvia-se uma barulheira danada: estavam rachando lenha. Tinham cons­truído uma plataforma de madeira pouco acima do nível da água, bem na borda do ghat; as toras eram empilhadas nessa plataforma onde homens as cor­tavam, usando machados. Vários blocos de madeira formavam piras funerárias nos degraus do ghat, que levam até o rio. Quando chegamos ali, havia quatro corpos sendo cremados. Tivemos de esperar a nossa vez.
À distância, uma ilha de areia branca reluzia ao sol, e botes cheios de gente se dirigiam para lá. Fi quei imaginando se a alma da minha mãe teria ido para aquela ilha,para aquele lugar brilhante no meio do rio.
Já disse que o corpo de minha mãe estava envolto em cetim. Agora, tinham coberto também o seu rosto, e várias achas de lenha, tantas quanto pudemos comprar, estavam sendo empilhadas sobre o seu corpo. Então, o sacerdote ateou fogo à minha mãe.
- No dia em que chegou à nossa casa, ela era uma boa moça, muito sosse­gada - disse Kusum, pondo a mão no meu rosto. - Não fui eu que comecei com essa história de brigar...
Afastei aquela mão. Fiquei olhando para minha mãe.
Quando o fogo devorou o cetim, deu para ver um pé pálido, que surgiu ali como algo vivo; os dedos, que iam derretendo com o calor, começaram a se encurvar, oferecendo resistência ao que estavam lhes fazendo. Kusum em­purrou aquele pé de volta para o meio do fogo, mas ele não queimava. Meu coração disparou. Minha mãe não ia deixar que a destruíssem.
Debaixo da plataforma onde as toras estavam empilhadas, era um verda­deiro lamaçal escuro, no ponto em que as águas do rio tocavam as margens. Aquele monte de lama estava cheio de guirlandas de jasmim, pétalas de rosas, pedaços de cetim, ossos chamuscados; um cachorro amarelado rastejava por ali, fuçando em meio às pétalas, ao cetim e aos ossos.
Olhei para aquele lamaçal, olhei para o pé retorcido de minha mãe e en­tendi tudo.
Era a lama que a estava impedindo de ir embora: aquele monte enorme de lama preta. Ela tentava lutar contra aquilo; seus dedos estavam encurvados e resistiam; mas a lama a estava tragando, sugando. Era tão espessa e, a cada instante, a água que banhava o ghat criava uma quantidade maior daquele lodo. Logo, logo a minha mãe seria parte daquele lameiro negro, e o cachorro ama­relado ia começar a lambê-Ia.
E então, compreendi: aquele era o verdadeiro deus de Benares, essa lama preta do Ganges na qual tudo morria, se decompunha, e era dali que tudo renascia, para voltar a morrer. O mesmo aconteceria comigo quando eu mor­resse e me trouxessem para cá. Nada ali atingiria a liberação.
Perdi o fôlego.
Foi a primeira vez na vida que desmaiei.
Desde esse dia, nunca mais fui ver o Ganges: deixo o rio para os turistas americanos!"

Ilustração: Tigre branco, "...o mais raro dos animais de qualquer floresta, que só nasce um a cada geração...", como narrado no livro (pág. 34).

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