Os fatos narrados abaixo, extraídos do livro "As Noites das Grandes Fogueiras", de DOMINGOS MEIRELLES, revelam a dramática situação vivida pela população de São Paulo durante as cerca de três semanas que foi submetida aos bombardeios das forças legalistas.Para se ter uma idéia da dimensão da tragédia, há dados que revelam "a destruição de 11 mil casas em toda a cidade". São Paulo tinha, em 1924, 700 mil habitantes (o equivalente, hoje, à população de Campo Grande ou São José dos Campos). Estimativas apontam que os ataques do Exercito levaram à morte entre 500 a 1000 civis. Conheça os horrores da estratégia dos bombardeios terrificantes.
"Às dez horas da manhã, São Paulo é sacudida, de repente, por uma sucessão de explosões. O chão estremece com o impacto das granadas. A cidade está sendo bombardeada pelo Exército. Os canhões legalistas estão despejando sua carga contra áreas densamente povoadas, atingindo bairros industriais, longe do Centro. O ataque semeia o pânico entre a população e provoca grandes incêndios que podem ser vistos em toda a capital.
O Alto-Comando revolucionário presume que a artilharia do Governo cometeu um erro grave de pontaria. Não existem trincheiras, tropas nem fortificações nas áreas que estão sendo castigadas pelo canhoneio. Os líderes rebeldes não acreditam que as baterias do Exército estejam atirando deliberadamente contra alvos civis, espalhando a destruição e a morte entre os moradores desarmados dessas regiões afastadas, sem nenhum interesse militar.
As cargas concentradas dos canhões de 155 milímetros deixam o general Isidoro e seus oficiais perplexos. Esse armamento pesado, de acordo com as regras mais elementares do emprego da artilharia, só deve ser usado no ataque a fortificações bem-defendidas, depois de estabelecido um contato com o inimigo e definidas, com precisão, as posições por ele ocupadas. Os regulamentos franceses, adotados pelo Exército brasileiro desde 1920, são claros quanto ao verdadeiro papel desse tipo de canhão num combate: 'O seu principal objetivo é o apoio direto à infantaria por tiros executados contra o pessoal e carros blindados', ensina o manual.
Não há, portanto, recomendação técnica ou estratégica que justifique o bombardeio contra uma cidade populosa como São Paulo.
O terror se apossa rapidamente desses bairros pobres e humildes, como a Mooca, onde vivem também milhares de imigrantes estrangeiros, na maioria italianos recém-chegados ao Brasil. O povo, enlouquecido pelas granadas que não param de cair sobre as casas, foge inicialmente para as ruas, sem saber como se defender. Muitas famílias refugiam-se nos porões para escapar das granadas lançadas.
(...)
Meio dia. Começam a chegar os primeiros feridos ao Hospital da Santa Casa, transportados em ambulâncias, carroças e automóveis. O desespero dos médicos e enfermeiros revela a extensão da tragédia. Não há como atender a toda essa legião de sobreviventes, com o corpo coberto por uma pasta de sangue e entulho, que aumenta a cada tiro de canhão. O bombardeio não se apieda de suas vítimas. Os corredores do hospital estão alagados de homens, mulheres e crianças gravemente feridos, resgatados dos escombros pelos vizinhos. Alguns chegam em estado desesperador, mutilados pelos estilhaços das granadas. Os feridos em estado grave são levados imediatamente para as enfermarias, em padiolas improvisadas, a fim de receber os primeiros socorros, enquanto aguardam remoção para o centro cirúrgico. Muitos não suportam os ferimentos, nas enfermarias superlotadas, e são conduzidos logo para o necrotério. O hospital exibe também as suas chagas: faltam leitos, médicos, enfermeiros, remédios, ataduras, esparadrapo, linha de sutura. Algumas cirurgias de urgência são feitas até mesmo sem anestesia. O Hospital da Santa Casa não tem mais condições de continuar recebendo os feridos, que não param de chegar.
O general Isidoro reúne-se com os oficiais do seu Estado-Maior para examinar a gravidade da situação. Bernardes e o Exército haviam enlouquecido. O bombardeio contra uma cidade densamente povoada com o objetivo de provocar o maior número de vítimas civis viola também o direito da guerra. O chamado 'bombardeio terrificante', defendido, no século passado, por generais alemães como forma de obrigar a população a acelerar o processo de capitulação sempre foi condenado pelo Direito Internacional. Há muito que esse tipo de bombardeio é também reprovado pelos tratados militares, que o consideram imoral, injusto, inútil e desumano, na doutrina de quase todos os mestres.
- Além de imoral [afirma o general Isidoro], esse bombardeio é também impiedoso e criminoso; uma demonstração de que o presidente Bernardes enlouqueceu. O Exército não pode desrespeitar a Convenção de Haia de 1917, da qual o Brasil é um dos signatários. O Governo desconhece que os direitos da sociedade, anteriores e superiores aos do Estado, organização meramente política, não caducam e não se extinguem quando os funcionários por qualquer motivo desertam do cumprimento de seus deveres. A autoridade do Estado decorre moralmente da legitimidade do seu mandato. O presidente Bernardes, com esse bombardeio, provou mais uma vez que não tem condições morais de continuar exercendo a Presidência da República. A sociedade deve retomar os seus direitos, dos quais ele é apenas o mandatário.
(...)Bernardes e Setembrino [Ministro da Guerra] optam pelo chamado 'bombardeio terrificante' na tentativa de esmagar rapidamente a rebelião e impedir que ela contamine outros estados, onde é também muito grande a insatisfação contra o governo, particularmente entre as guarnições do Exército no Paraná, em Mato Grosso e no Rio Grande do Sul.
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O ministro do Exército sabia que a revolução de São Paulo fora instigada pela rebeldia espiritual dos bacharéis fardados ou científicos, como os oficiais formados na Praia Vermelha gostavam de ser chamados. Na academia militar, eles eram também conhecidos como provocadores, no doce sentido que essa expressão tem quando se refere à instigante inquietação intelectual, própria dos jovens, às vésperas da ascensão ao oficialato. Com suas idéias, os científicos são capazes de incendiar o país [assim pensava o General Setembrino também conhecido como General Escuridão]. É preciso contê-los [os revoltosos] a qualquer preço, mesmo que isso custe o massacre da população civil.
As ruas dos bairros pobres do Brás, da Mooca, do Hipódromo e do Belenzinho amanhecem juncadas de cadáveres [estamos no segundo dia dos bombardeios]. Alguns corpos, há mais de 24 horas insepultos, são enterrados sem as formalidades legais, nos cemitérios mais próximos e até mesmo em terrenos descampados. Muitas famílias sepultam seus mortos nos quintais. No Cemitério Municipal, onde centenas de pessoas vagam como zumbis à procura de desaparecidos, 64 corpos não identificados aguardam os coveiros, para serem levados e enterrados em covas rasas. Cerca de 200 mortos anônimos se amontoam também numa baixada do Cemitério do Araçá, à espera de sepultamento.
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Os rebeldes ainda não conseguiram se recuperar do impacto causado pelo bombardeio, que parece mais empenhado em atingir alvos civis do que em demolir a resistência militar das tropas que ocuparam a cidade. O QG revolucionário e os quartéis da Luz até agora não foram atingidos por uma única granada. Muitos prédios também ruíram no centro da cidade, longe do local onde estão concentradas as tropas rebeldes, provocando grande número de mortes nas ruas São Luís, Caio Prado, Boa Vista, Santa Efigênia, na avenida São João e no Largo Paissandu.
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O general Isidoro reage com uma expressão de incredulidade ao ler o telegrama que acaba de ser colocado sobre sua mesa. Não acredita que o presidente [como eram chamados os governadores de Estado] de São Paulo seja o autor daquela mensagem que acaba de ser enviada ao Senado Federal:
'Estou certo de que São Paulo prefere ver destruída sua formosa capital antes que destruída a legalidade no Brasil. Cordiais Saudações.
(A) Carlos de Campos, presidente do estado de São Paulo.'
- O presidente Carlos de Campos enlouqueceu [desabafou o general Isidoro]. Como é possível demonstrar tanta frieza de sentimentos diante de tamanho sofrimento? Ele acha que os canhões estão atirando com munição de festim? É preciso ser muito estúpido para não avaliar a dimensão de toda essa tragédia, depois de três dias de bombardeio. O exército também deve ter enlouquecido. Meu Deus, estão todos loucos!
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O QG rebelde, instalado na estação da Luz, uma réplica em estilo vitoriano da estação de Sydney, na Austrália, é duramente atingido por uma informação que chegou de táxi: o Teatro Olympia, que servia de abrigo para dezenas de famílias que haviam perdido suas casas, acabara de ser alvejado pela artilharia do Governo.
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O cenário que o Olympia oferece, no começo da avenida Rangel Pestana, é desesperador. As colunas, o teto e as paredes parecem ter desabado ao mesmo tempo, oferecendo poucas chances de sobrevivência a seus ocupantes, em sua maioria velhos, mulheres e crianças. A confusão é muito grande, com dezenas de pessoas tirando o entulho com as mãos, na tentativa de retirar as vítimas soterradas pelo desabamento. Ouvem-se gemidos abafados que brotam dos escombros.
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O general Isidoro regressa, ao anoitecer [estamos no oitavo dia do levante] à estação da Luz com uma lista parcial das vítimas da tragédia [ataque ao Teatro Olympia]: 30 mortos e cerca de 80 feridos. O bombardeio só conseguiu espalhar a morte e a destruição entre a população civil. Nenhum dos seus homens foi até agora atingido pela artilharia do Governo.
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Os rebeldes assistem perplexos ao bombardeio aéreo [que foi iniciado na segunda semana de combates]. A população, que já se habituara a se proteger da artilharia refugiando-se nos porões, abandona as casas, enlouquecida com o impacto das explosões. Famílias inteiras, dominadas pela histeria, correm aos gritos pelas ruas, sem destino. As pessoas atropelam-se pelas calçadas sem saber para onde ir. Muitos ficam simplesmente paralisados, no meio da rua, anestesiados pelo medo. Mulheres e crianças choram abraçadas nas esquinas, enquanto soldados se movimentam nervosamente, de um lado para outro, tentando atingir os aviões com seus fuzis.
Algumas horas depois do ataque aéreo, muitas famílias permanecem em estado de choque, enquanto milhares de pessoas vagam sem rumo pelas ruas, no mais completo desespero, o rosto transfigurado pelo pavor.
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Às duas da tarde a população corre, mais uma vez, enlouquecida pelas ruas. O ataque aéreo ainda não começou, mas já se pode ouvir ao longe o rouquejar abafado dos aviões, A cidade fica novamente paralisada pelo medo, à espera do bombardeio. Passageiros saltam dos bondes e se refugiam embaixo de marquises, como se estas pudessem oferecer algum tipo de proteção. Motoristas, atormentados com a aproximação dos aviões, que estão cada vez mais perto, abandonam carros e caminhões no meio da rua e correm para o interior das lojas. O barulho dos motores é ensurdecedor. É possível ver, entre as nuvens escuras, dois grandes aviões do Exército tomando a direção do bairro da Mooca.
Tensa, com os olhos pregados no céu, a população acompanha angustiada o vôo pesado e arrastado dos bombardeiros. Como se obedecendo a um único comando, os aviões despejam, de uma só vez, a carga que levam aninhada sob as asas. A terra estremece e os prédios balançam com as explosões."
Ilustração: São Paulo, julho de 1924.
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