CARLOS HEITOR CONY - "O Mosteiro dos Tijolos de Feltro"


O Mosteiro dos Tijolos de Feltro
Carlos Heitor Cony

INFINITA É a capacidade do homem em buscar sarna para se coçar. Se até agora não demos o nosso recado, é evidente que quebramos a cara, e o remédio é assumir o fracasso e tratar de fazer pouco barulho. Foi mais ou menos o que não fiz quando tive tempo e pretexto para ficar quieto num canto e deixar o mundo fazer aquilo que o nosso presidente chamou de "sifu".
Aos 20 anos, encontrei um desinformado que me pagou para tocar piano num inferninho aqui no Rio -uma caverna vil, cheia de bêbados e prostitutas, foi assim que ganhei meu primeiro ordenado com o suor do meu rosto e o cansaço de meus dedos incompetentes.
Depois, também como não queria nada, passei para a literatura e logo para o jornalismo. Eis que novamente encontrei desinformados que me pagaram por uma e outra coisa -e assim fui vivendo meus dias, com dinheiro pouco, mas bastante para o leite das crianças e para o meu próprio leite.
Nunca precisei rolar pelas sarjetas -profecia de um mestre que perdeu a paciência comigo por causa de umas equações de 2º grau e me profetizou um futuro negro, esmolando pão, dormindo sob marquises, coberto por jornais da véspera. Essa imagem às vezes retorna ao meu inconsciente: são os únicos momentos em que me considero um vencedor. Pelo menos até agora, ainda não cheguei a esse estágio de miséria.
Mas nunca se deve confiar em quem já tocou piano e escreveu tanto para ganhar o pão de cada dia. Tempos atrás, aproveitando um recesso doméstico -fui operado nas cordas vocais e tive que passar duas semanas na encolha- dei para pintar. Isso mesmo: pintar quadros.
Pegava pincéis e espátulas, esparramava cores aqui e ali, depois assinava e datava para que a posteridade soubesse quando e onde havia feito uma obra-prima. Borrando aqui e ali fui acumulando obras de arte que transbordaram de meu apartamento e vieram comigo ao trabalho.
Um dia -que ainda será celebrado na história universal como um marco memorável da estupidez humana-, vendi um quadro a um desprevenido. Por maior que fosse minha decadência moral e humana, senti algum remorso. À noite, rondei a casa do camarada, para ver se ele havia sido expulso do lar.
Cheguei a imaginá-lo sentado na calçada, o quadro entre as pernas, meditando sobre a besteira que fizera e que lhe provocara o exílio. Alguma coisa de inacreditável deve ter acontecido, pois o cara foi aceito em casa, por sua mulher, filhos e agregados.
Piorando a coisa, três ou quatro dias depois vendi outro quadro e, durante algum tempo, era rara a semana em que não emplacava uma tela, recebendo em troca aquele papel retangular emitido pela Casa da Moeda e que os bancos aceitam como dinheiro. Ainda não fiz os cálculos, mas creio que vendi uns 20 quadros de diversos tamanhos, feitios, cores e propostas -pois os meus quadros tinham a proposta de não ter proposta alguma. Van Gogh e Modigliani nunca venderam um quadro em vida. Já é um começo de conversa. Não precisei cortar a orelha numa crise de desespero, como o primeiro, nem comer velas para me alimentar com o sebo, como o segundo.
Caprichei, sobretudo, nos azuis. Conheci uma norte-americana em Veneza, que ali vivia havia dez anos, apenas para estudar os azuis de Ticiano. É possível que daqui a alguns séculos, alguém venha estudar os meus azuis -que são quase verdes.
Não é por nada, não, mas fui em frente enquanto tive vontade e demência suficientes para continuar. Não tinha muita coisa a perder, além da compostura que já havia perdido. Depois de algumas esforçadas tentativas, passei a me dedicar aos abstratos conceituais -forma sofisticada de não ter conceito algum. Uma papelaria do Catete fazia anualmente um calendário com quadros de autores desconhecidos, troquei um deles por tubinhos de acrílico e pincéis importados. Pediram-me um nome para identificá-lo, não sei como, me deu vontade de batizá-lo como "Mosteiro dos Tijolos de Feltro". O dono da papelaria gostou do quadro, mas não gostou do nome. Chamou-o de "Impressões". O único impressionado fui eu mesmo, que decidi parar com aquilo e voltar a escrever romances -o que dava mais ou menos na mesma.

(Folha de S. Paulo, 19/02/09)

Nenhum comentário: