“NEGÓCIO FECHADO”– Conto de Jorge Medauar - A CRISE FINANCEIRA GLOBAL E A DISTANTE CRISE CACAUEIRA NO SERTÃO DA BAHIA

Com o eclodir de mais uma crise econômica global, quando as notícias de desastres financeiros não mais puderam ser desmentidas, pensamos em publicar um conto, trecho de romance, alguma literatura, enfim, ambientada no tema. Que não enseja novidade posto que elementar a sujeição do sistema capitalista a crises cíclicas (Marx). As lembranças dos abalos de 1870 e1929 e dos relatos literários deixadosem relação a tais períodos foram imediatas e nos trouxeram à mente um conto sobre o cataclisma financeiro de 1929, e cuja narrativa começa com uma Wall Street sossegada, numa plácida e inocente manhã, realidade que, instantes depois ganha contornos dramáticos com a erupção dos fatos que determinaram o Crash de 29 e a Grande Depressão. Não localizamos o conto; sequer recordamos quem seja o seu autor.

Pois agora tivemos a fortuna de encontrar – ao acaso, o conto, "Negócio Fechado", que narra as agruras de um fazendeiro que sucumbiu à crise do cacau nos meados do Séc. XX. Ambientado no sertão baiano, o texto enovela a tragédia do aturdido fazendeiro numa dimensão universal, atemporal.

O livro, intitulado "O INCÊNDIO", edição de 1963 da Civilização Brasileira, foi encontrado no sebo MANIA DE CULTURA, em Ribeirão Preto. E arrematado pela bagatela de R$ 6,50. Jorge Medauar é um escritor de primeira. Nível 1, na rigorosa classificação de Décio Pignatari. Atenção O texto é longo para os moldes de um blog. Mas sua qualidade justifica o espaço. A capa do livro(veja ao lado), por seu turno, é um horror.

"DE TANTO CAMINHAR PELA MESMA estrada, o burro já não precisava ser guiado: entrava e saía pelos desvios, pegava a picada estreita que dava volta aos mata burros, atravessava riachos.
A marcha era mansa: Guilhermino seguia escanchado, as pernas compridas escorridas para baixo, os pés triscando o chão. O corpo, no sacudido do andar do burro, parecia saco mole. Era ver um homem ferido, levado "sem saber para onde".
Seguia para a roça com a cabeça baixa, doída. O gringo Chafik já devia estar à espera, avaliando a roça, perguntando coisas aos trabalhadores.
Essa era uma viagem que o coronel nunca esperava fazer.
Mas precisava. Agora precisava. E se fechasse o negócio, nunca mais botaria os pés naquelas terras. Nunca mais correria seu cacau. Nunca mais soltaria o trovão da voz, dando ordens aos trabalhadores.
Há mais de vinte anos vinha colhendo, fazendo dinheiro com safras gordas. Seus burros, na época das colheitas, suavam no carregamento: chegavam a Água Preta resfolegando, descarregavam centenas de arrôbas. Num instante, o cacau virava dinheiro. O talão de cheques não saía de suas, mãos: era só assinar. Pagar. Comprar. Levar coisas para casa. Dar presentes às raparigas. Se quisesse levantar uma casa, ordenava: no outro dia, o formigueiro de carapinas, mestres, pedreiros, estava no preparo de tudo, fazendo subir paredes. Nas viagens da mulher, encomendava trole especial: a mulher mais os filhos seguiam nos passeios para Ilhéus, Salvador, Rio de Janeiro. Suas raparigas viviam exibindo roupas de seda pesada, se encharcando de perfumes finos. Nas quermesses, a última palavra, na hora de arrematar uma bobagem, era sua: roncava logo uma fortuna, arrematava um mealheiro de vidro por contos de réis. Quando entrava no bar de Maçu, o próprio Maçu largava seu quefazer, vinha pessoalmente atender: "Pois não, às ordens, prontamente." Só faltava se espalhar no chão, virar esteira para seu coronel passar por riba.
Agora seguia pensando coisas, como se tudo tivesse passado num sonho. A cabeça estava inchada. Sentia quentura na testa, uma agonia no peito. Saíra bem de manhã, justamente para não ser visto. Não queria que ninguém tivesse pena de sua ruína. Queria afundar-se no atoleiro de dívidas, sem receber uma palavra de consôlo. Já havia despachado a mulher para a casa do irmão, na Bahia. E antes de ficar bichado como os outros, resolvera terminar seus negócios sozinho, sem ninguém de junto para amofinar.
Depois da grande baixa do cacau, agora, de seu, não tinha mais que aquela fazenda. A que dava mais. As outras foram todas devoradas nas hipotecas: uma atrás da outra. Igual que rês seguindo para o corte. Das duas casas montadas para as raparigas, não restava nenhuma peça de valia: somente o gramofone alemão - uma raridade que fazia pena deixar perdida numa roça como Água Preta. Sua última rapariga, há menos de uma semana, por pouco não arma um curuquerê no meio da rua. Que as mulheres do vento sabem quando um coronel desanda em desgraça. Então botam logo a natureza para fora, emporcalham a pessoa com palavras cabeludas. e fedorentas. Enquanto dinheiro corre, para esbanjamento, se abrem. Amansam. Alisam como bichaninho , entre as pernas do dono.
Sua rapariga já estava influída, ousando em demasia: ameaçara sair pelas ruas, proclamando sua falência. Chegara a lhe dizer nas bochechas que era um coronel quebrado, sem um derréis na algibeira. Tivera que aquietá-Ia. Prometera máquina de costura. Anéis. Jóias. Mesmo assim, a mulher abrira a bôca para as vizinhas: "Coronel de meia pataca". Não tivera dúvida que era o começo do desmoronamento. Uma rapariga, lidando com um e com outro, esbagaçaria a honra de qualquer um. Precisaria, portanto, acabar com aquilo, mesmo que fôsse obrigado exemplar com surra de relho. Reconhecera a tempo não poder ter casa aberta para raparigas. E, com muito custo, se livrara da mulher, afastara o vexame. Mas se a rapariga saísse por aí, na falação, estaria no seu direito concordava. Era ignorante, uma pobre tirada da roça para aquietar-lhe o corpo. Até que perdoaria. Mas nunca que perdoasse o insulto de nenhuma outra pessoa de Água Preta. Uma gente sonsa: ficava como urubu, esperando os outros virar carniça para cair no avanço. Bem vira o que fizeram com Valdomiro: quando se arruinou, esborrachara de uma vez. Nenhuma ajuda, de quem quer que fôsse. Quem tinha, não lhe emprestava. As casas de comércio fecharam-lhe o crédito, bateram-lhe a porta no focinho. Suas cadernetas de fiado não valiam um traque queimado. O homem sumiu da cidade, debaixo da maior humilhação, com a roupa do corpo, a mulher atrás, de olhos pilados, mesmo que retirante. Ninguém quisera saber de seus compromissos, de suas dívidas, das dores no coração batido de tanto penar. Com êle seria a mesma coisa. Ora, se não seria! Mas antes que sua roça fôsse arrematada por dois cruzados, como foram as de outros que se perderam em dívidas, já havia marcado encontro com Chafik. Haveria de vender a roça por preço justo. O gringo não era da terra. Não estava viciado.
Em Água Preta, na hora que ficavam sabendo que a miséria batia palmas na porta de alguém, corriam para as ofertas. Umas ofertas de merda, para acabar de enterrar o necessitado.
- Mas comigo não tem disso não - disse em voz alta.
O burro estalou as orelhas. Guilhermino esporeou o bucho do animal. Rangeu os dentes: nunca que se entregasse, como um frouxo qualquer, pensou. Enfrentara outras crises. Passara por apertas que outros nunca passaram. E, afinal de contas, não estava com lama no pescoço. Sua roça valia pelo menos uns oitenta contos. Estava em boa ordem. Fizera melhor ias no ano passado, quando o cacau ainda valia. Botara trilhos novos nas barcaças. Comprara boa partida de sacos. Mandara roçar os matos, limpar os carrapichos da beira dos caminhos. Fizera tudo isso esperando que o cacau fôsse bater nas nuvens: um erro. Um erro dos grossos. Deveria ter desconfiado da safra, aplicar seu crédito em outras coisas mais rendosas. Como o Coronel Arlindo, que estava ganhando fortunas em porcos. Ou mesmo como o gringo Chafik, que andava por Minas Gerais negociando gado. O gringo tinha cacau, é bem verdade. Mas nunca descansara no que o cacau podia render. Seu negócio grosso era fazenda de gado. Comprava uma atrás da outra, par qualquer preço. Agora, no paradeiro, andava montado em montanhas 'de dinheiro. O cacau valia tanto quanto cocô de galinha. Mas quando o gringo metia a mão no bolso e puxava o talão de cheque, até os bancos estremeciam. Ficava botando nos cheques carreiras de zeros, parecendo volta de contas.
lnda bem que encontrara Chafik - pensava. Despertara seu interesse pela roça, numa conversa desprevenida, como quem não queria nada. O gringo fôra a Água Preta visitar seu compadre Emílio, para acertar o batizado do menino caçula. Encontrara-se com êle por acaso. Soltara 'duas palavrinhas:
- Então, seu Chafik... veio passear, ver o compadre, não foi?
O gringo balançara a cabeça, abanando o chapelão mandado vir de encomenda de São Paulo. Sem tirar o charuto da bôca, tornara a balançar a cabeça, dizendo que era isso mesmo.
- Como vai a situação lá por Sequeiro do Espinho, seu Chafik?
- Bem. E vosmecê, com o cacau?
- O que tá vendo: uma baixa dos infernos. Paradeiro
nunca visto.
O gringo falava sem interesse: não demonstrara nenhuma fraqueza nas palavras, como os coronéis do cacau. Falava como se nunca tivesse notícia do paradeiro. O charuto revirado na bôca, os olhos firmes, em cima da pessoa. A testa sem ruga, a bôca sem amargor. Sim senhor - pensara - um gringo de cabeça clara, de estrêla luminosa. Enquanto o povo se enrolava no falar, no disfarce, o gringo se abria, empinava os peitos, vazava franqueza. Tinha rios. de dinheiro. Um homem para ser mesmo admirado! Não podia deixar de admirar, embora fôsse um gringo - gente danada. Sempre reparara nos gringos. Cadê que nenhum se perdia, quando o cacau desandava? Com paradeiro, sem paradeiro, cada um cuidava do seu negócio: era só juntando dinheiro, se regalando nas comidas boas, instruindo os filhos. Entrava safra, saía safra e a gringalhada no seu, no fresco de suas casas - sem embaraços com tropas de burro, trabalhador para aperrear, capataz para surrupiar cacau. Nada de cangalhas. Barcaça. Japurá estragando os frutos. Quem quisesse que botasse reparo no gringo Emílio: gordo, emborcando seu copo de cachaça, armando banquetes para os graúdos de Ilhéus, da Bahia. Tinha ninguém sabe quantas casas. Acho que toda a rua do Apertucho era dele. E os filhos com professoras caras, aprendendo nos livros de Francês...
O burro escorregou a casco numa pedra: Guilhermino desmanchou os pensamentos. Onde é que estou? - perguntou-se.
Olhou o caminho: estava atravessando terras, de Antônio Ferreira. Com mais uma hora - ponderou - estaria na cancela de sua roça. E quando chegasse por certo o gringo já teria decidido se ficaria ou não com a roça. E quando chegasse, por certo o gringo já teria decidido se ficaria ou não com a roça. Seu único medo era de que seu Emílio, compadre de Chafik, tivesse influído em seu ânimo contra a compra. Porque ninguém melhor do que o gringo Emílio conhecia sua situação: devia-lhe inúmeras cadernetas. No caso de ter revelado sua condição de arruinado, decerto o aproveitamento viria. E Chafik viraria sonso como qualquer um. "Ah, então está vendendo a roça porque tá enforcado, não é?"
Imaginou o diálogo entre os dois patrícios: o gringo Emílio informando que êle, Guilhermino, já lhe devia contos de réis, barrica de bacalhau, arame farpado, muitos quilos de bolachas, latas de marmelada, cravo para ferrar animais, fazenda de pano para as raparigas. Já estava vendo Chafik com o charuto na bôca, os ouvidos acesos, balançando a cabeça. E o gringo Emílio influindo: "Ofereça uma bobagem, compadre, que êle vende. Já liquidou as casas das raparigas, mandou a mulher se socorrer com o irmão na Bahia. Tinha um anel de muito valor: vendeu-o, sem ninguém saber, a um caixeiro viajante de Pernambuco. As fazendas pequenas já estão perdidas nas hipotecas. O homem só tem de seu mesmo é a pose. Ofereça qualquer dinheiro, compadre."
Tesou o corpo em cima do burro. Ô, vida desgramada! Ô raça de gringos, filhos da peste.
Tornou a esporear o ventre do animal. O burro, que vinha manso, disparou pelo caminho. Mas pouco a pouco, foi voltando à marcha normal. E Guilhermino novamente mergulhou nos pensamentos, sentindo que o mundo estava desabando.
Acabou concordando que não podia escapar da desgraça. Estava mesmo arruinado: chegara sua vez de ser achincalhado. Ninguém pode afastar com as mãos os Poderes desconhecidos que embaraçam uma pessoa - considerou. Agora reconhecia que fôra extravagante. Pisara muitas vêzes, sôbre o mundo, quando o dinheiro corria feito água entre seus dedos. Rompera a virgindade de meninas roxinhas de roça. Com dois-três metros de madrasto inferior, comprara a honra de inocentes, largara-as na rua do Gameleiro. Despachara trabalhadores.
Mandara lascar de pau muitos cabras com simples suspeita de roubo. Influíra na política. Afastara intendentes. Botara para longe de Água Preta muita gente que lhe fazia sombra. Sempre empinara sua arrogância de coronel. A mulher, quando passava pelas ruas, era como rainha: exibia jóias, anéis de pedras enormes. E agora? Agora iria passar pelas ruas de Água Preta como um cigano, como um cantor de feira, um vendedor de corotes de água. Imaginava dona Júlia pelas casas, nos comentários: "Viu? Gastou o que tinha e o que não tinha com raparigas. Agora anda por aí, pedindo pelo amor de Deus um empréstimo para ajudar a família, para vestir as filhas. Foi vender a roça ao gringo Chafik: o gringo pisou em cima dele como pata de boi em riba de jia. Tá de crista arriada".
- Isto não, isto não - gritou, espantando dos ouvidos a voz de dona Júlia, que parecia falar como se estivesse a seu lado.
Procurou se distrair com os matos, examinando as árvores do caminho. Aquela é braúna. Aquela outra é jenipapo. Aquela gorda, no pé do morro, é jaqueira. Ia dizendo, para afastar da cabeça zumbidos de um enxame de marimbondos azucrinando.
Cada vez que pensava estar navegando para a miséria, a cabeça só faltava estourar - ficava cheia: abelhas, marimbondos, trovoada balançavam-lhe o juízo. Apertava as têmporas com as mãos, esfregava a testa. Mas os pensamentos vinham, agoniavam como muriçocas. Se alojavam. Cresciam. Inchavam. Batucavam nos miolos. Só faltava enlouquecer. Uma hora, podia perder o juízo, apanhar o revólver pendurado na parede, estourar os miolos judiados com tanto pensamento escuro. Precisaria um pouco mais de calma. Estava seguindo para ver o gringo e não podia, antes de conversar com êle, socar na cabeça pensamentos malucos. Tomara que Chafik resolva ficar - desejou. Respiraria. Tomaria fôlego. Era um copo d'água num deserto de mormaço. Pelo menos pagaria dívidas miúdas" liquidaria com a lista de remédios da farmácia de Dionísio, passaria um risco vermelho no livro de fiado do gringo Emílio. Poderia cruzar com dona Júlia. Entrar no bar de Maçu, de cabeça erguida. Devo alguma coisa a alguém nessa terra? - perguntaria. Não senhor, não deve nada, não senhor teriam que responder. Quem iria indagar das dívidas grossas" que estavam assentadas nos livros dos bancos de Ilhéus, Itabuna, Salvador? O pior eram mesmo as contas miúdas. E gente pequena esparrama. Desonra. Bota a perder a posição de qualquer pessoa, embora a gente tenha sido um rei, um príncipe. Ninguém avaliava desgraça como falta de sorte, como destruição provocada pelo cacau. Isso doía mais do que punhal no peito. Por essa razão é que vinha tomando seus cuidados, pensando em arribar, levar a família para um meio maior, de gente mais instruída. Não tinha natureza para aturar ofensas ditas pelas costas. A gente pequena de Água Preta era pior que pixixica: beliscava até a alma.
Levantou a cabeça: viu a cancela de sua roça. Apressou o burro. Sempre, naquele ponto, em viagem para a roça, espetava as esporas. Gostava de fazer aquêle pedaço num trote puxado.
Quando chegou, um trabalhador abriu a cancela. Tomou a brida do burro. Cumprimentou com respeito.
Pela primeira vez, reparava na atenção de um trabalhador. Pensou que todo mundo devia se comportar como aquêle tabaréu, dando respeito a quem tinha, cumprindo sua obrigação sem ninguém mandar. Patrão é patrão - ora essa!
Sentiu-se mais à vontade, diante da atitude do trabalhador. Tesou a cabeça. E procurou Chafik com os olhos.
O gringo vinha descendo as escadas do alpendre, em mangas de camisa, o charuto mastigado no canto da bôca. Foi quem falou primeiro:
- Então, coronel, fêz boa viagem?
- Como tá vendo, seu Chafik. Só o sol, danando na cabeça.
Apertaram as mãos. Andaram juntos até a casa. Os trabalhadores por ali, esperando o sol esfriar.
Sentaram-se no banco da frente, na sombra fresca da varanda. Pegaram conversar. Uma conversa sem importância.
Guilhermino apontou as criações. Lá estavam. Eram todas de sua propriedade. Entre elas, havia um jegue perebento, cego de um ôlho: andava se batendo, coçando o couro bichado nos moirões da cerca.
- Um dia mando um cabra acabar com a agonia dêsse bicho disse.
- Dá pena mesmo, coronel. Velhice, quando vem, destrói gente, destrói bicho - não respeita ninguém. Meu gado não chega a envelhecer: vai tudo ainda novo para o corte. . . mas vai gemendo com o pêso da gordura. . .
- Ô Miguel! - gritou Guilhermino para um trabalhador. Vá lá dentro, mande fazer garapa de tamarindo aqui para seu Chafik. Para mim também... Avie. É pra hoje.
Enquanto esperava o refrêsco, Chafik começou a debulhar perguntas: quantas arrôbas a fazenda estava dando? Quantos burros tinha? Quantos homens? Havia madeira para lenha? Dendêzeiro? Plantação de comer? Aguada de veio limpo?
Pelo jeito - considerava Guilhermino - o homem estava interessado. Suas. perguntas eram de frente. Não pareciam vir instruídas pelo gringo Emílio. Chafik falava como comprador de verdade e não como urubu cheirando carniça. Lidar com gente assim valia a pena.
Passou às respostas. Acentuou as qualidades da roça: era perto de Água Preta. Não tinha trabalhadores gatunos. Ninguém nunca se rebelara com o que estava ganhando. Fêz carga:
- Isto não tem preço, seu Chafik. É o que faz o progresso de uma roça. O senhor pode ficar no Sequeiro, ir para as suas invernadas, não tomar cuidado com essa roça. No que é seu, ninguém bole. Meus homens foram escolhidos a dedo. Não viu o respeito, na hora que botei o pé no chão?
Foi aí que Chafik fêz a pergunta, quase no remate do assunto:
- Quanto quer pela roça, coronel? Último preço.
Antes de responder, sentiu um frio no coração, um fresco na alma: aquilo era a prova de que o negócio estava fechado. O gringo Emílio não dilapidara por trás, não roera o negócio que precisava ser feito. Então respondeu, pausadamente, com o mesmo tom de superioridade de outros tempos:
- Setenta contos. É o que é, seu Chafik. Último preço. - Vosmecê sai perdendo, coronel. Mas é negócio fechado.
Como? Não estava entendendo as palavras do gringo! Por um instante a cabeça zuniu de novo. Tornou a ouvir zoeira de marimbondos perturbando o juízo. Que história é essa de sair perdendo? Com franqueza, não entendia! Falou:
- Ô seu Chafik: o preço é justo, não é não?
- Eu não entendo de roça de cacau, coronel. Meu negócio é gado, porco, carneiro. Compadre Emílio me disse que sua propriedade era uma beleza. Foi êle quem forneceu quase tudo para as melhorias que vosmecê fêz na roça. Vosmecê não compra na mão dele? Pois êle me disse que soube, por
gente entendida, que sua roça vale mais do que cem contos. Negócio assim, quem é que não faz, seu Guilhermino?
O trabalhador chegou com a bandeja de tamarindo. Beberam. Guilhermino sentiu-se aliviado.
O sol estava mais brando. O capataz tratava dos animais. Enxugava-lhes o pêlo, dava-Ihes água. O jegue velho capengava por ali, arrepiando o focinho, mostrando os. dente até em cima, zurrando quase sem força.
Numa galinha que ciscava, Chafik sacudiu o charuto consumido. Estava na hora de voltar. E agora, Guilhermino só queria era chegar em tempo ao cartório.
Pediu os animais ao capataz. Convidou Chafik para montar primeiro.
No caminho, não parou de conversar. Falou no povo de Água Preta, na sonsice daquela gente. Castigou todo mundo, dizendo que era um povo atrasado, sem consideração com ninguém. Mas quando chegou na vez de falar no gringo Emílio, abrandou as palavras: seu Chafik não podia saber até onde ia sua admiração pela família do gringo. Podia pensar que era adulação, porque seu Chafik ia batizar o mais menor. Apois não era não, ficasse sabendo. Era de coração o que dizia.
Estimava de verdade aqueles filhos, todos ajustados, com a cabeça no lugar. Dali ia sair muita gente formada.
Chafik balançava a cabeça, ouvindo sem dar um pio. Guilhermino de língua sôlta. Era ver um menino contando histórias.
Com mais um pedaço de caminho, começou a falar por cima do mundo. Era um homem cumpridor dos seus deveres. Um homem sério. Nunca deixara de pagar ninguém. Criara seus filhos em Água Preta _' Conhecia todo mundo. Sentia ter que sair da terra. Mas precisava. Não era criança. Se não tivesse vendido a roça, se tivesse outro negócio, nunca arredaria o pé de Água Preta. Mas o cacau estava caminhando para trás, o preço descendo cada vez' mais. Já não tinha o que fazer por ali. Agora era procurar trabalho noutro lugar. Talvez negociasse gado. O importante era deixar de lado o cacau, abandonar a terra, evitar vexames.
- Pois vosmecê se engana, coronel, atalhou Chafik. O cacau vai subir é muito. Eu, se fôsse o senhor, querido como é na terra, com êsse dinheiro negociava mesmo em cacau. Andei muito por aí tudo, antes de me decidir viajar para sua roça. Falei com um e com outro sôbre vossuria. Não houve um que não dissesse que o senhor não era entendedor de cacau. Também não houve um que dissesse que vosmecê não era gente de bem. Todo mundo lhe admira. Todo mundo tem vontade de oferecer negócio ao senhor. Mas, cadê coragem? Se queixam que o senhor passa sem dar atenção a ninguém, fazendo valer sua autoridade de coronel. Desculpe lhe dizer isso. . .
Parou, trincou nos dentes o bico de outro charuto. Guilhermino não teve ânimo de interromper o silêncio. Esperou Chafik acender. Sem tirar o charuto da bôca, Chafik continuou:
- Compadre Emílio me disse que ninguém tem mais crédito em sua loja do que o senhor. O mesmo me disse seu Antônio Ferreira. Seu Coleto. Seu Baracho. Emiliano Bráulio. É o que há de melhor em Água Preta. Vosmecê tá maldando de seus amigos, metendo tolice na cabeça.
As palavras de Chafik, espremidas pela bôca apertada no charuto, eram sinceras, duras, com fôrça de chicote. Embora falasse com franqueza, vasculhando sua vida, reconhecia que o gringo era simpático.
Desejou que a viagem não acabasse mais nunca. Precisava ouvir aquilo. Fôra a primeira vez que alguém lhe falava naquele tom, abrindo-lhe os olhos numa conversa de amigo, sem arrodeio. Que povo mais medroso, êsse de Água Preta! Ora, ora! Então não viam que era um homem igual a eles, um fazendeiro de cacau como os outros?
- Continue, seu Chafik. Continue. Chafik olhou para êle, admirado:
- Continuar o que, seu coronel? Já disse o que tinha a dizer. Se apronte: estamos entrando na cidade.
Guilhermino ainda não havia visto as casas baixas aparecendo. Vinha visgado nas palavras de Chafik. A viagem fôra rápida. Agora, parecia estar acordando, ouvindo o rio marulhando nas pedras.
Espiou as lavadeiras que subiam o outeiro com trouxas de roupa na cabeça. Vinham de Pancada Formosa. Tarde fresca. Um vento fino afastava o bafo quente deixado pelo sol, que se afundava no sertão.
Botou sentido no burro, admirando como aquêle animal não errava seu caminho. Quantas vezes fizera aquela mesma viagem? Não tinha como contar. E não era uma pena, de uma hora para outra, mudar de terra, principiar tudo de novo? E se não se desse bem para longe? Se os meninos não acostumassem na escola, a mulher não criasse amizade aos outros? Sacudiu os pensamentos. Botou os olhos para frente.
Achou uma beleza aquêle pedaço de caminho, aquela entrada de Água Preta: o rio, a côr do céu, as lavadeiras voltando da fonte, meninos parando para ver os cavaleiros passar. Era como se estivesse entrando na cidade pela primeira vez. Nunca vira Água Preta assim. Nunca reparara que a terra de seus filhos era clara. As janelas das casas viviam abertas, com passarinhos cantando nas gaiolas.
Num instante, fêz um balanço de tôda sua vida. Considerou que talvez houvesse um pouco de exagêro em seus receios.
Um homem não pode viver sem se juntar aos outros, numa terra pequena, onde todos se conhecem. Que diabo podia fazer com o dinheiro que ia receber? Seu coração estava falando que suas mãos não sabiam lidar com outra coisa que não fôsse cacau. O gringo falara certo. Povo danado, êsse povo de Água Preta! A cabeça da gente endoida por bobagens. E a vida às vêzes desarruma. Mas é preciso bom juízo para botar tudo no lugar. O importante, em tudo isso, era saber que ninguém estava querendo sua desgraça. Mais importante, ainda, era saber que Água Preta agora estava aberta diante de seus olhos. Como flor nova se oferecendo na beira de uma estrada.
Estavam chegando à Praça. Seu coração começou sacudir. Sentiu umas coisas por dentro. Uma vontade de mudar. Mudar tudo. Lavar os pensamentos. Acordar para uma clara manhã que tinia sua luz nos olhos que dormiam.
Apertou as rédeas do burro, estancou de repente. Chafik perguntou:
- Que foi?
- Vosmecê continua meu amigo se eu refugar a venda, compadre Chafik?
- Se arrependeu, coronel?
- Foi.
- Vosmecê obra muito bem, seu Guilhermino - acentuou Chafik, emendando com um sorriso:
- Vamos tomar uma cerveja ali em Maçu. Vosmecê paga.
- É com muito gosto, seu Chafik!
Tocaram. Apearam na porta do bar. Maçu preparava as torcidas para acender os candeeiros. Assim que viu Guilhermino, largou sua ocupação, apressou-se para recebê-lo na porta:
- Entre, coronel. E vós também, seu Chafik.
Guilhermino estendeu a mão para Maçu. E reparou que seu tratamento era o mesmo - não mudara."

Iustração: Cacau, óleo de Eliomar Tesbita

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que Sua Excelencia não registra a data do post?
Abraço,
Luridi